Manif pelo Benfica
Ou é de mim ou era do meu Pai - vai dar no mesmo -, mas tenho sempre esta ideia de que o Benfica é mais importante do que a Selecção e até, claro, do que o país. Não compreendo bem os avulsos vómitos sobre Portugal - não que não aprecie passear-me pelos campos ou deslumbrar-me numa serra, aquietar-me em frente ao mar, de uma nação que clama por muito absolvimento. É só que acho as fronteiras linhas imaginárias de coisa nenhuma, criando burocracias ou lutas bélicas em espaços de liberdade. Cheiremos: a Andaluzia é o Alentejo com presuntos à volta; a Beira é a Extremadura com queijos à volta; a Galiza é o Minho sem rojões à volta. E o resto é Lisboa, Valência, Barcelona, o Douro e o País Basco. Nada que nos faça o coração desesperar. Somos iguais ou quase.
Lembro-me de observar o meu Pai no Mexico 86: as suas formas de golo, os seus instintos mais primários, as doses de álcool que sorvia. E, apesar de não compreender tudo de uma psicologia de Daniel Sampaio - onde portugueses e espanhóis deixaram os beiços ibéricos -, notava-lhe de forma clara a falta de Benfica, que é todo um conceito que gira em redor de um amor tão estratosférico que às vezes fere a alma e dilacera o coração. Portugal perdia e era uma chatice, as pessoas lá em casa comentavam: "Olha, Portugal perdeu", mas eu não sentia que o mundo provavelmente fosse acabar como sentia quando o meu Pai chegou de Viena ou de Estugarda. Ali, de facto, e apesar de todos os rolos de carne enfeitados a molho de tomatada e das simpatias e beijos com que recebemos o nosso herói que vinha de autocarro horas - dias? - a fio pelas estradas de uma Europa ainda solidária e cheia de permanentes e enxumaços nos casacos, ali, naquele lugar da sala, eu senti uma tristeza milenar, alguma coisa que ia resolver-se ao longo dos anos, vertendo, dia a dia, uma chuva de lamúrias que fomos tentando absorver com o cuidado de pinças para não criar pesadelos no coração daquele benfiquista.
Olho o mundo, as ruas, os cafés, o estádio e o facebook. Gente tão incisiva, tão pronta à crítica mordaz e aflita sobre os nossos políticos e a situação financeira - monstro viral que se acumula e faz-nos sentir pecinhas de puzzle ou peixes adormecidos em aquários. Toda a gente tem uma opinião e uma voz que se levanta, indignadíssima!, acerca dos Gaspares e dos Relvas, virando alcoolémias mil, tratados revolucionários, pedidos de clemência, insatisfações, vontades de eterno, criações demoníacas. Os políticos portugueses são uma corja de delinquentes!, exclamam os mais atentos, na loucura dos sentidos. E apelam muito à desordem, à liberdade da opinião, apelam ao sentido crítico, à necessária inteligência associativa e solidária. Tudo é exigência e luta, tudo é criatividade e desespero, tudo é botas da tropa enfiadas nuns pés preparados para a guerra. Vamos à nova manifestação! Onde é que é agora? Em Belém? Nos Restauradores? Na Avenida da Liberdade? No Marquês? Em Cacilhas? Dentro de uma casa-de-banho? Vamos, que o país - esse conceito universal dos sentimentos - precisa de nós.
E o Benfica? E o Benfica, onde fica? Entre desejos românticos de crenças místicas, no lugar das transcendências quotidiadas, no refúgio de uma vida de luta. O Benfica nunca existe como espaço que devemos levar no nosso mais profundo coração e lutar por ele. Fica entre duas manifestações, no meio do horário de emprego, na chatice de mais um dia, na aceitação da banalidade. Os mesmos que intransigentemente vociferam contra as injustiças sociais, éticas, morais e de costumes sobre os políticos, desenvolvem todo um mecanismo de relatividade, de compreensão, até de alguma resignação pelo estado do clube. O Benfica é futebol, vai-se ao estádio apoiar, dizem-se umas chalaças, sai-se a dez minutos do final do jogo, apanha-se o carro e vai-se para casa ligar o computador para dizer mal do governo.
Se calhar é de mim, ou então do meu Pai, o que é a mesma coisa, mas as fronteiras que me existem são do domínio dos clubes e dos golos, das jogadas que não acabaram nas redes ou das decisões que fizeram afundar ou elevar o meu clube. Se o vejo afundar-se num mar de equívocos, apetece-me ir de bandeira vermelha em riste para a Avenida da Liberdade clamar pela sua sobrevivência. O país é um lugar estranho onde estranhamente nascemos. O Benfica não, foi-nos nascido.